terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Frei Luís de Sousa

1. Acção dramática
Frei Luís de Sousa contém o drama que se abate sobre a família de Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena de Vilhena. As apreensões e pressentimentos de Madalena de que a paz e a felicidade familiar possam estar em perigo tornam-se gradualmente numa realidade. O incêndio no final do Acto I permite uma mutação dos acontecimentos e precipita a tensão dramática. E no palácio que fora de D. João de Portugal, a acção atinge o seu clímax, quer pelas recordações de imagens e de vivências, quer pela possibilidade que dá ao Romeiro de reconhecer a sua antiga casa e de se identificar a Frei Jorge.
O Acto I inicia-se com Madalena a repetir os versos d'Os Lusíadas:
  • "Naquele engano d'alma ledo e cego,
    que a fortuna não deixa durar muito…"
As reflexões que se seguem transmitem, de forma explícita um presságio da desgraça que irá acontecer. Obedecendo à lógica do teatro clássico desenvolve a intriga de forma a que tudo culmine num desfecho dramático, cheio de intensidade: morte física de Maria e a morte para o mundo de Manuel e Madalena.
2. Do drama clássico ao drama romântico
Se se pretender fazer uma aproximação entre esta obra e a tragédia clássica, poder-se-á dizer que é possível encontrar quase todos os elementos da tragédia, embora nem sempre obedeça à sua estruturação objectiva.
A hybris é o desafio, o crime do excesso e do ultraje. D. Madalena não comete um crime propriamente na acção, mas sabemos que ele existiu pela confissão a Frei Jorge de que ainda em vida de D. João de Portugal amou Manuel de Sousa, apesar de guardar fidelidade ao marido. O crime estava no seu coração, na sua mente, embora não fosse explícito como entre os clássicos.
Manuel de Sousa Coutinho também comete a sua hybris ao incendiar o palácio para não receber os governadores. A hybris manifesta-se em muitas outras atitudes das personagens.
O conflito que nasce da hybris desenvolve-se através da peripécia (súbita alteração dos acontecimentos que modifica a acção e conduz ao desfecho), do reconhecimento (agnórise) imprevisto que provoca a catástrofe. O desencadear da acção dá-nos conta do sofrimento (páthos) que se intensifica (climax) e conduz ao desenlace. O sofrimento age sobre os espectadores, através dos sentimentos de terror e de piedade, para purificar as paixões (catarse). A reflexão catártica é também dada pelas palavras do Prior, quando na última fala afirma: "Meus irmãos, Deus aflige neste mundo àqueles que ama. A coroa da glória não se dá senão no céu".
Tal como na tragédia clássica, também o fatalismo é uma presença constante. O destino acompanha todos os momentos da vida das personagens, apresentando-se como um força que as arrasta de forma cega para a desgraça. É ele que não deixa que a felicidade daquela família possa durar muito.
Garrett, recorrendo a muitos elementos da tragédia clássica, constrói um drama romântico, definido pela valorização dos sentimentos humanos das personagens; pela tentativa de racionalmente negar a crença no destino, mas psicologicamente deixar-se afectar por pressentimentos e acreditar no sebastianismo; pelo uso da prosa em substituição do verso e pela utilização de uma linguagem mais próxima da realidade vivida pelas personagens; sem preocupações excessivas com algumas regras, como a presença do coro ou a obediência perfeita à lei das três unidades (acção, tempo e espaço).
3. Tempo
A acção dramática de Frei Luis de Sousa acontece em 1599, durante o domínio filipino, 21 anos após a batalha de Alcácer-Quibir. Esta aconteceu a 4 de Agosto de 1578.
"A que se apega esta vossa credulidade de sete… e hoje mais catorze… vinte e un anos?", pergunta D. Madalena a Telmo (Acto I, cena 11).
"Vivemos seguros, em paz e felizes… há catorze anos" (1, cena 11).
"Faz hoje anos que… que casei a primeira vez, faz anos que se perdeu el-rei D. Sebastião, e faz anos também que… vi pela primeira vez a Manuel de Sousa", afirma D. Madalena (Il. cena X).
"Morei lá vinte anos cumpridos" (…) "faz hoje um ano… quando me libertaram", diz o Romeiro (Il. cena XIV).
A acção reporta-se ao final do século XVI, embora a descrição do cenário do Acto I se refira à "elegância" portuguesa dos princípios do século XVII.
O texto é, porém, escrito no século XIX, acontecendo a primeira representação em 1843.
4. Personagens
D. Madalena de Vilhena é a primeira personagem que aparece na obra, mas pode-se afirmar que toda a familia tem um relevo significativo. São as relações entre esposos, pais e filha, o criado e os seus amos ou mesmo o apoio de Frei Jorge que estão em causa. Um drama abate-se sobre esta família e enquanto Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena se refugiam na vida religiosa, Maria morre como vítima inocente.
D. Madalena tinha 17 anos quando D. João de Portugal desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir. Durante 7 anos procurou-o. Há catorze anos que vive com Manuel de Sousa Coutinho. Tem agora 38 anos (17 + 21). Mulher bela, de carácter nobre, vive uma felicidade efémera, pressentindo a desventura e a tragédia do seu amor. Racionalmente, não acredita no mito sebastianista que Ihe pode trazer D. João de Portugal, mas teme a possibilidade da sua vinda. E com medo que a encontramos a reflectir sobre os versos de Camões e a sentir, como que em pesadelo, a ideia de que a sobrevivência de D. João destrua a felicidade da sua família. No imaginário de D. Madalena, a apreensão torna-se pressentimento, dor e angústia. É neste terror que se vê na necessidade de voltar para a habitação onde com ele viveu.
Manuel de Sousa Coutinho (mais tarde Frei Luis de Sousa) é um nobre e honrado fidalgo, que queima o seu próprio palácio, para não receber os governadores. Embora apresente a razão a dominar os sentimentos, por vezes, estes sobrepõem-se quando se preocupa com a doença da filha. É um bom pai e um bom marido.
Maria de Noronha tem 13 anos, é uma menina bela, mas frágil, com tuberculose, e acredita com fervor que D. Sebastião regressará. Tem uma grande curiosidade e espírito idealista. Ao pressentir a hipótese de ser filha ilegítima sofre moralmente. Será ela a vítima sacrificada no drama.
Telmo Pais, o velho criado, confidente privilegiado, define-se pela lealdade e fidelidade. Não quer magoar nem pretende a desgraça da família de D. Madalena e Manuel. Mas como verdade recorrente no mito sebastianista, acredita que D. João de Portugal há-de regressar. No fim, acaba por trair um pouco a lealdade de escudeiro pelo amor que o une à filha daquele casal, D. Maria de Noronha. Representa um pouco o papel de coro da tragédia grega, com os seus diálogos, os seus agoiros ou os seus apartes.
O Romeiro apresenta-se como um peregrino, mas é o próprio D. João de Portugal. Os vinte anos de cativeiro transformaram-no e já nem a mulher o reconhece. D. João, de espectro invisível na imaginação das personagens, vai lentamente adquirindo contornos até se tornar na figura do Romeiro que se identifica como "Ninguém". O seu fantasma paira sobre a felicidade daquele lar como uma ameaça trágica. E o sonho torna-se realidade.
Frei Jorge Coutinho, irmão de Manuel de Sousa, amigo da família e confidente nas horas de angústia, ouve a confissão angustiada de D. Madalena. Vai ter um papel importante na identificação do Romeiro, que na sua presença indicará o quadro de D. João de Portugal.
5. Cenário
O Acto I passa-se numa "câmara antiga, ornada com todo o luxo e caprichosa elegancia dos principios do século XVII", no palácio de Manuel de Sousa Coutinho, em Almada. Neste espaço elegante parece brilhar uma felicidade, que será, apenas, aparente.
O Acto II acontece "no palácio que fora de D João de Portugal, em Almada, salão antigo, de gosto melancólico e pesado, com grandes retratos de familia…". As evocações do passado e a melancolia prenunciam a desgraça fatal.
O Acto lll passa-se na capela, que se situa na "parte baixa do palácio de D. João de Portugal". "É um casarão vasto sem ornato algum". O espaço denuncia o fim das preocupações materiais. Os bens do mundo são abandonados.
6. A Atmosfera psicológica
Há ao longo da intriga dramática uma atmosfera psicológica do sebastianismo com a crença no regresso do monarca desaparecido e a crença no regresso da liberdade. Telmo Pais é quem melhor alimenta estas crenças, mas Maria mostra-se a sua melhor seguidora.
Percebe-se também uma atmosfera de superstição, nomeadamente desenvolvida em redor de D Madalena.
7. Simbologia
Vários elementos estão carregados de simbologia, muitas vezes a pressagiar o desenrolar da acção e a desgraça das personagens. Apenas como referência, podemos encontrar algumas situações e dados simbólicos:
·         A leitura dos versos de Camões referem-se ao trágico fim dos amores de D. Inês de Castro que, como D. Madalena, também vivia uma felicidade aparente quando a desgraça se abateu.
·         O tempo dos principais momentos da acção sugerem o dia aziago: sexta-feira, fim da tarde e noite (Acto I), sexta-feira, tarde (Acto II), sexta-feira, alta noite (Acto lll); e à sexta-feira D. Madalena casou-se pela primeira vez; à sexta-feira viu Manuel pela primeira vez; à sexta-feira dá-se o regresso de D. João de Portugal; à sexta-feira morreu D. Sebastião, vinte e um anos antes.
·         A numerologia (1) parece ter sido escolhida intencionalmente. Madalena casou 7 anos depois de D. João haver desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir; há 14 anos que vive com Manuel de Sousa Coutinho; a desgraça, com o aparecimento do Romeiro, sucede 21 anos depois da batalha (21=3x7). 0 número 7 é um número primo que se liga ao ciclo lunar (cada fase da Lua dura cerca de sete dias) e ao ciclo vital (as células humanas renovam-se de sete em sete anos), representa o descanso no fim da criação e pode-se encontrar em muitas representações da vida, do universo, do homem ou da religião; o número 7 indica o fim de um ciclo periódico. O número 3 é o número da criação e representa o círculo perfeito. Exprime o percurso da vida: nascimento, crescimento e morte. O número 21 corresponde a 3x7, ou seja, ao nascimento de uma nova realidade (7 anos foi o ciclo da busca de notícias sobre D. João de Portugal e o descanso após tanta procura); 14 anos foi o tempo de vida com Manuel de Sousa (2x7, o crescimento de uma dupla felicidade: como esposa de Manuel e como mãe de Maria; 14 é gerado por 1+4=5, apresentando-se como símbolo da relação sexual, do acto de amor); 21 anos completa a tríade de 7 apresentando-se como a morte, como o encerrar do círculo dos 3 ciclos periódicos O número 7 aparece, por vezes, a significar destino, fatalidade (imagem do completar obrigatório do ciclo da vida), enquanto o 3 indica perfeição; o 21 significa, então, a fatalidade perfeita.
·         Maria vive apenas 13 anos. Na crença popular o 13 indica azar. Embora como número ímpar deva apresentar uma conotação positiva, em numerologia é gerado pelo 1+3=4, um número par, de influências negativas, que representa limites naturais. Maria vê limitados os seus momentos de vida.






8. Acção Trágica
Elementos trágicos
Hybris
(o desafio)
Agón
(o conflito)
Pathos
(o sofrimento)
Katastrophé
(a catástrofe)
D. Madalena de Vilhena
contra as leis e os direitos da família:

adultério no coração

consumação pelo casamento com Manuel

profanação de um sacramento

bigamia
interior, de consciência

contínuo

crescente

gerador de conflitos:
com D. Manuel
com D. João
com Maria
com Telmo
por causa do adultério

pela incerteza da sorte do primeiro marido

violento pela volta ao palácio do primeiro marido

cruel após conhecimento da existência do primeiro marido:
pela perda do marido
pela perda de Maria
causada pelo regresso de D. João - morte psicológica:

separação do marido

profissão religiosa

salvação pela purificação:

irmã Sóror Madalena das Chagas
Manuel S. Coutinho
revolta contra as autoridades de Lisboa

desafia o destino ao incendiar o palácio

recusa o perdão

inconscientemente participante da hybris de sua esposa
não tem conflito de consciência

não entra em conflito com as outras personagens

a sua hybris desencadeia e agudiza os conflitos das outras personagens
sofre a angústia pela situação da sua mulher

sofre a angústia pela situação presente e futura da filha
morte psicológica:

separação da esposa
separação do mundo
profissão religiosa

glória futura de escritor:

Frei Luís de Sousa: glória de santo
D. João de Portugal
abandona a família

não dá notícias da sua existência

aparece quando todos o julgavam morto
não tem conflito

alimenta os conflitos dos outros

agudiza todos os conflitos com o seu regresso
sofre o esquecimento a que foi votado

sofre pelo casamento da sua mulher

sofre por não poder travar a marcha do destino
morte psicológica:

separação da mulher

a situação irremediável do anonimato
D. Maria de Noronha
revolta contra a profissão religiosa dos pais

revolta contra D. João de Portugal

convida os pais a mentir
não tem conflito

entra em conflito com:
sua mãe
seu pai
Telmo
D. João de Portugal
sofre fisicamente:
tuberculose

sofre psicologicamente:
não obtém resposta a muitos agoiros
vergonha da ilegitimidade
morre fisicamente

vai para o céu
Telmo Pais
afeiçoa-se a Maria

deseja que D. João de Portugal tivesse morrido
conflito de consciência

conflito com outras personagens:
com D. Madalena
com D. Manuel
com Maria
com D. João de Portugal
sofre pela dúvida constante que o assalta acerca da morte de D. João de Portugal

sofre hesitando entre a fidelidade a D. João e a D. Manuel

sofre a situação de Maria
não poderá resistir a tantos desgostos
9. Estrutura dramática
Estrutura Interna

Exposição
Acto I - cenas I, II, III e IV
Conflito
Acto I - cenas V-XII

Acto II

Acto III - cenas I-IX
Desenlace
Acto III - cenas X-XII

Acto I
Estrutura Externa



cenas I-IV

cenas V-VIII

cenas IX-XII
Informações sobre o passado das personagens Preparação da acção - decisão dos governadores e decisão de incendiar o palácio

Acção: incêndio do palácio
Acto II
cenas I-III

cenas IV-VIII

cenas IX-XV
Informações sobre o que se passou depois do incêndio

Preparação da acção: ida de Manuel de Sousa Coutinho a Lisboa

Acção: chegada do Romeiro
Acto III
cena I

cenas II-IX

cenas X-XII
Informações sobre a solução adoptada

Preparação do desenlace

Desenlace