domingo, 12 de dezembro de 2010

Linhas orientadoras da correccção da prova de 7/12

ESCOLA SECUNDÁRIA PROF. JOSÉ AUGUSTO LUCAS
Prova escrita de Português 12º A – Dezembro de 2010

Nota: Antes de iniciar as respostas leia todo o enunciado.                                              V 1

I – Leia o texto, constituído por cinco estâncias de Os Lusíadas, transcritas do Canto IX.


Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas,                     89
Tétis e a Ilha angélica pintada 1,                                        
Outra cousa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada 2.
Aquelas preminências 3 gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha,
Estes são os deleites desta Ilha.

Que as imortalidades que fingia                                   90
A antiguidade, que os Ilustres ama,
Lá no estelante Olimpo 4, a quem subia
Sobre as asas ínclitas da Fama,
Por obras valerosas que fazia,
Pelo trabalho imenso que se chama
Caminho da virtude, alto e fragoso,
Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso,

Não eram senão prémios que reparte,                           91
Por feitos imortais e soberanos,
O mundo cos varões que esforço e arte
Divinos os fizeram, sendo humanos.
Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,
Eneas e Quirino e os dous Tebanos 5,
Ceres, Palas e Juno com Diana,
Todos foram de fraca carne humana.

Mas a Fama, trombeta de obras tais,                            92
Lhe deu 6 no Mundo nomes tão estranhos
De Deuses, Semideuses, Imortais,
Indígetes 7, Heróicos e de Magnos.
Por isso, ó vós que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo 8,
Que o ânimo, de livre, faz escravo.

E ponde na cobiça um freio duro,                                93
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente:
Milhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.
Luís de Camões, Os Lusíadas, ed. prep. por A. J. da Costa Pimpão,
5.ª ed., Lisboa, MNE/IC, 2003

1 Ilha angélica pintada: representação, pintura de uma ilha linda, que lembra um lugar habitado por anjos.
2 sublimada: ilustre, célebre.
3 preminências (por preeminências): distinções, superioridades, honrarias, louros, prémios.
4 no estelante Olimpo: na brilhante morada dos deuses.
5 os dous Tebanos: Hércules e Baco.
6 Lhe deu: lhes deu.
7 Indígetes: divindades primitivas e nacionais dos Romanos.
8 do ócio ignavo: do ócio indolente, preguiçoso.


Apresente, de forma bem estruturada e sucintamente, as suas respostas às questões que se seguem.


1 - Exponha, resumidamente, o conteúdo das três primeiras estrofes.
A resposta deve abordar os seguintes aspectos:

1ª Estrofe A lha, as Ninfas e Tétis, correspondem ao prémio, a recompensa dada aos marinheiros; os «deleites» são os triunfos, os louros;

2ª Estrofe − já os prémios concedidos na antiguidade eram atribuídos a quem se esforçava e fazia o difícil percurso da virtude;

3ª Estrofe − aqueles que hoje são deuses não passam de humanos que praticaram feitos de grande valor; daí terem recebido o prémio da imortalidade.

2 - O excerto pode dividir-se em duas partes lógicas. Apresente essa divisão indicando que marca linguística estabelece essa transição.
A resposta deve abordar os seguintes aspectos:

- 1ª parte, as três primeiras estrofes, significado da Ilha e  atribuição das recompensas;

- 2ª parte, introduzida pela conjunção adversativa “Mas”, início das considerações /reflexões do poeta

3 - Identifique o recurso estilístico presente na estância 92 e explicite a intenção que lhe está subjacente.
A resposta deve abordar os seguintes aspectos:

- trata-se da apóstrofe:  ó vós que as famas estimais”

- interpelação directa aos portugueses, aconselhando-os para o esforço e necessidade

de acordar do «ócio ignavo», da preguiça, da decadência.

4 – Nas estrofes 92 e 93 o poeta dirige-se aos seus contemporâneos e incita-os ao heroísmo. Indique o desafio que lhes é dirigido e, pelo menos, três atitudes criticáveis nos seus contemporâneos.
A resposta deve abordar os seguintes aspectos:

- desafia-os a praticarem altos feitos “se no mundo quiserdes ser tamanhos”

- três aspectos criticáveis: cobiça, ambição e tirania.

5 – Segundo o poeta, que função desempenha a “Ilha angélica” no contexto da sublimação do herói? Justifique as suas afirmações com expressões do texto.

A resposta deve abordar os seguintes aspectos:

- segundo o excerto a Ilha tem a função de premiar aqueles que se dedicaram com esforço e heroísmo a uma causa justa e nobre;
- prémio espiritual e honras em confronto com os prémios materiais;
- colocação estratégica no fim da viagem: fusão dos planos narrativos.


6 – Leia, atentamente, a seguinte estrofe retirada do Canto X de Os Lusíadas:
No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dhua austera, apagada e vil tristeza
.
Luís de Camões, Os Lusíadas, ed. prep. por A. J. da Costa Pimpão,
                                                                                               5.ª ed., Lisboa, MNE/IC, 2003
Considere a seguinte opinião sobre Os Lusíadas:

«Mas o texto é complexo e, por vezes até, contraditório. Em certos momentos exibe uma
face menos gloriosa; aquela em que emergem as críticas, as dúvidas, o sentimento de crise.»

Maria Vitalina Leal de Matos, Tópicos para a Leitura de Os Lusíadas,
Lisboa, Editorial Verbo, 2004

Fazendo apelo à sua experiência de leitura de Os Lusíadas, faça um comentário, sobre o contraste do elogio dos heróis e as críticas do poeta. O texto deverá ter entre setenta e cento e vinte palavras.

A resposta deve abordar alguns dos seguintes aspectos:

- a reflexão da estância, que inicia o epílogo de Os Lusíadas, e o texto de apoio complementam-se

- as reflexões ora criticam os contemporâneo, ora aconselham o rei

- aspectos elogioso e aspectos dignos de crítica:

- aspectos elogiosos relativo aos navegantes que se esforçaram “mais do que prometia

a força humana”

- aspectos críticos, relativo aos que ficam na sombra do rei, incultos, acomodados

acentuado pelo verso “No mais, Musa, no mais”……., invocação pela negativa….

- carácter humanista das reflexões


II – Num texto expositivo, entre duzentas a trezentas palavras, refira-se à simbologia da Ilha dos Amores, no contexto da épica camoniana. Para o efeito considere o comentário que se segue:

“ É certíssimo afirmar que o mito deve ser lido n’Os Lusíadas com os olhos de Fernando Pessoa da Mensagem: O mito é o nada que é tudo. Não existe, não é real, mas cria. Em particular dá sentido .”
Maria Vitalina Leal de Matos, A Poesia Épica de Camões, apud Manual, Plural, 12º

A resposta deve abordar, pelo menos, três dos seguintes aspectos:

- o prémio/recompensa: imortalidade
- a fusão humano divino
- a fusão dos planos narrativos
- o mítico lugar ameno: Paraíso, Campos Elíseos, lugar dos heróis
- amor e beleza absolutos
- o conhecimento




Pontuação:
I – Interpretação: 1- 20 pontos; 2 –12 pontos; 3 – 15 pontos; 4 – 18 pontos; 5 – 15 pontos; 6 – 30 pontos
II – Texto expositivo: 50 pontos

Nota: A 3ª parte, sobre aspectos da gramática, com valorização de 40 pontos, será feita numa das próximas aulas


III – Gramática

1 – Na expressão “ Tétis e a Ilha angélica pintada”, angélica é
a – um nome derivado por sufixação
b – um adjectivo, palavra primitiva
c – um adjectivo derivado por sufixação
d – um nome, palavra primitiva

2 – Na expressão “outra cousa não é que as deleitosas honras, deleitosas é
a – um adjectivo formado por prefixação a partir da palavra leite
b – é um adjectivo e é uma palavra primitiva
c – é um nome comum  formado por modificação
d – é um adjectivo formado por sufixação

3 – A flexão é um processo afixação e aplica-se a:
a– verbos,        b – nomes e adjectivos            c – nomes, adjectivos e verbos                        d – nomes

4 – Na frase “ que a Lira tenho destemperada e enrouquecida” as palavras sublinhadas são
a – ambas formadas por prefixação
b – ambas formadas por sufixação
c – ambas formadas por modificação
d – cada uma delas é formada por um processo diferente

5 – A palavra “enrouquecida” é uma palavra formada por
a – composição
b – flexão
c – parassíntese
d – prefixação e sufixação

6 – Dê atenção ao nome lira. Escreva um nome, um verbo e um adjectivo derivados de lira.

7 – Dê atenção à seguinte lista de palavras: rude->rudeza; rico->riqueza; avaro-> avareza. Assinale o significado que o sufixo atribui às novas palavras
a – acção
b – agente
c – qualidade
d – profissão

8 – Na sequência apresentada há um intruso. Transcreva-o:
transcrever, pré-escolar, pós-operatório, telefonia,  desleal, cooperante


segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Teste - Estrutura

Caríssimos alunos,

Eu encontro-me adoentado. Breve passará. Independemente dissso, informo que se mantém a programação. Apesar de eu, possivelmente, não estar presente, amanhã, 7 de Dezembro, é dia de avaliação. Está tudo programado, apresentem-se pois a tempo e horas na vossa sala. A estrutura da prova é a seguinte:

Leiam primeiro bem todo o enunciado.


I - 110 pontos

Texto base - estrofes da Ilha dos Amores, final do canto IX.

5 - questões de interpretação, com valor de 80 pontos. Resposta mais sintética.

1 - questão comentário com mínimo de 70 e máximo de 120 palavaras, sobre uma estrofe de reflexão do poeta e citação de um autor. Tem a valorização de 30 pontos.

II - Escrita: texto expositivo, com valor de 50 pontos. O texto deve ter no mínimo 200 e no máximo 300 palavras.

Façam um texto articulado, com parágrafos e apelo à vossa capacidade de síntese, não ultrapassem mesmo os limites.


III - esta parte, que incidirá sobre questões gramaticais será feita numa próxima aula. Terá a valorização de 40 pontos.

Faço votos de um bom trabalho

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Processos morfológicos - Formação de palavras

Os processos de criação ou formação de palavras existentes em português são:
afixação (derivação, modificação e flexão);
conversão (derivação regressiva e derivação imprópria);
composição (morfológica, morfossintáctica).

A afixação é o processo em que se associa um afixo a uma forma de base permitindo a formação de uma palavra. A afixação pode ocorrer por derivação ou modificação.

A derivação designa o processo de formação de palavras através de um afixo derivacional (prefixo ou sufixo que determina as propriedades morfossintácticas, como a classe a), o género dos nomes b), o tipo de conjugação dos verbos c), da forma de base em que ocorre):

a) [an]o                             anual
          nome                    adjectivo
b) [ram]o                            ramagem
         nome                    nome feminino
c) [ferv]er                                    fervilhar
radical verbal 2.ª conjugação -  verbo 1.ª conjugação

A derivação pode ser:

derivação por prefixação — consiste na junção de um afixo à esquerda da forma de base (denominado de prefixo), por exemplo:

gordura                   antigordura
            nome             adjectivo

derivação por sufixação — consiste na junção de um afixo à direita da forma de base (sufixo), alterando a suas propriedades morfossintácticas, por exemplo:

[bel]o                          beleza
       adjectivo              nome


derivação parassintética — consiste na junção simultânea de um prefixo e um sufixo a uma forma de base. Na parassíntese não é possível suprimir um dos afixos, por exemplo:

abonecar, amadurecer.... e outros verbos da mesma natureza, apavorar....
*aboneca     amadur                                                                                   pavorar
*bonecar      madur                                                                                      apavor

Estas formas individualizadas não existem

A modificação designa o processo morfológico de alteração/modificação de palavras base que decorre da junção de um afixo modificador a uma forma de base, por sufixação a) ou por prefixação b). Neste caso não se pode falar verdadeiramente de formação de novas classes de palavras:

a) livro                    livrinho
          nome             nome

b) fazer                   refazer
         verbo              verbo

A conversão inclui os processos derivação regressiva e derivação imprópria.

A derivação regressiva consiste no processo de formação de nomes a partir de verbos, em que se retira um segmento à forma de base:

atacar          ataque
     verbo       nome

A derivação imprópria consiste no processo de formação de palavras que não implica qualquer alteração formal, na medida em que apenas se procede à alteração da classe da palavra:

O jantar [nome] estava óptimo.

Vamos jantar [verbo].

A composição designa o processo morfológico de formação de palavras que associa duas ou mais formas de base.

Este processo pode realizar-se através da composição morfológica ou composição morfossintáctica.

A composição morfológica resulta da associação de dois ou mais radicais ligados entre si por meio de uma vogal de ligação, podendo ocorrer um hífen entre os radicais:

organ[i]grama
afro-americano

A composição morfológica pode ser:


composição morfológica de coordenação: ocorre quando os radicais da palavra composta apresentam um estatuto idêntico contribuindo de igual modo para a interpretação semântica da palavra. Os compostos deste tipo são adjectivos, e o contraste de género e flexão de número ocorre no final da palavra

(Ex: socioeconómicosocioeconómicas).


composição morfológica de subordinação: ocorre quando o radical que se apresenta à esquerda modifica semanticamente o da direita, pelo que existe uma forte dependência semântica entre os dois radicais. Alguns destes radicais ligam-se por uma vogal de ligação, i ou o, podendo ocorrer um hífen entre eles

(Ex: fotografia, luso-descendente, ped[agogia] (em pedagogia não é necessária a vogal porque o segundo radical começa por vogal)

A composição morfossintáctica designa o processo que associa duas ou mais palavras. Estes compostos podem ter uma estrutura de:

coordenação: integra palavras com estatuto idêntico, pelo que estas contribuem de igual modo para a interpretação semântica do composto. A coordenação associa particularmente nomes, podendo também incluir alguns adjectivos, conforme:

actor-encenador, surda-muda, e a flexão ocorre nos dois constituintes, conforme surdas-mudas.

subordinação: integra única e exclusivamente nomes. O nome da esquerda é considerado o núcleo, e o da direita, o modificador. A flexão ocorre no primeiro constituinte

 (Ex: bombas-relógio). Nestas estruturas os constituintes não apresentam um estatuto semântico idêntico, e o valor semântico do nome à esquerda é modificado pelo valor semântico do nome da direita:
bomba-relógio

A Flexão

Não é propriamente um processo morfológico de criar palavras.
Aplica-se às palavras variáveis, permitindo especificar as suas propriedades morfossintácticas e morfossemânticas. A flexão pode ser nominal ou verbal.

A flexão nominal aplica-se aos nomes e adjectivos, especificando o número singular ou plural e o género masculino ou feminino. De notar que o contraste de género não é considerado, por alguns gramáticos,  um processo de flexão (Gramática da Língua Portuguesa, Mateus et alii) dado que não é um processo obrigatório (apenas os nomes animados possuem contraste de género) e pode realizar-se através de outros processos de formação de palavras como derivação (cf. embaixador/embaixatriz), composição (cf. crocodilo-fêmea), contraste de género através de diferentes palavras (cf. ovelha/carneiro) ou contraste de género através do índice temático (cf. gato/gata).

A flexão verbal aplica-se aos verbos através da flexão em tempo-modo-aspecto e pessoa-número, ajustando-se à conjunção a que pertence o verbo (1.ª, 2.ª e 3.ª).

Ex:

am- (radical) -a (vogal temática) -v (desinência de tempo, no caso pretérito imperfeito dos verbos da 1ª conjugação)  -amos(desinência pessoa número)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A Ilha dos Amores - A Utopia

No canto IX, surge uma controvérsia quanto ao estilo sonhador do texto. Como surge encaixado na épica um texto carregado de lascívia? Os marinheiros valentes que usufruem de um locus amoenus geram a descendência semidivina da caça lusa, no qual uma ninfa profetiza os feitos futuros.
O episódio da Ilha dos Amores ocupa uma quinta parte do poema, entre os cantos IX e X. Encontra-se colocado estruturalmente na convergência de todos os diversos níveis de acção/planos que enformam a obra:

- a viagem dos marinheiros;
- a intriga dos deuses;
- a visão da história passada e futura de Portugal (e do mundo de então);

Todavia, introduz uma particularidade relativamente às epopeias clássicas: nestas o conhecimento advinha da catábase, isto é, da visita guiada ao mundo inferior (os Campos Elíseos, na Eneida de Virgilio e mesmo o inferno dantesco, na Divina Comédia); n’Os Lusíadas o conhecimento procede do alto, anábase, ascensão. Vasco d Gama, depois do envolvimento amoroso com Tétis, esta guia-o. Sobem ao cume de um monte para observar o espectáculo do mundo:

- a concepção da estrutura do mundo (cosmos);
- a interpretação filosófica do significado da acção dos homens no mundo;
- a crítica da situação factual da política do tempo de Camões.

Fácil será fazer uma extrapolação e dizer que a Ilha é a visão paradisíaca que a aventura marítima trouxe a Portugal carregado de viúvas e de órfãos! Ou que ela representa uma utopia de feição idealista: o lugar da recompensa dos homens após o longo sofrimento, privação e risco da demorada viagem. Camões percebe que o país de “apagada e vil tristeza” não recompensará nunca os heróis, por isso cria uma utopia ideal. Lugar e modo de recompensa, de encruzilhada e fusão amorosa: Divino e Humano, Esforço e Sonho, Clássico e Moderno.
Mas convém notar que, com a prática erótica que essa Ilha faculta aos homens e ao Gama, é feito, paralelamente, o discurso da revelação da sabedoria histórica e cosmogónica.

Para além de considerações de carácter esotérico, o que o poema nos dá é de facto a prática e o apogeu do amor puro, o "alto amor" como sendo a chave textual para a abertura do conhecimento.
Tais propostas são manifestamente inovadoras, até "heréticas", relativamente às doutrinas, quer neoplatónicas, quer católicas.

É na Ilha dos Amores que a tensão e a carência cedem lugar ao sentimento de conquista sobre o mar desconhecido. A Insula Divina simboliza porto e prémio aos fatigados navegadores, a glorificação pelos feitos heróicos, o restabelecimento da harmonia.

Na Ilha, desfecho do poema,  dissolve-se toda a mitologia a sua ficção maravilhosa e nasce o maravilhoso do Amor, tipicamente camoniano. Como sublinhou António José Saraiva: "a virilidade da coragem bélica se liga tão intimamente ao temperamento amoroso como ao aristocrático desprezo dos bens monetários."

As belas ninfas andavam nuas pelas florestas, algumas tocavam cítaras, outras flautas...

65
[...]aconselhara a mestra experta:
Que andassem pelos campos espalhadas;
Que, vista dos barões a presa incerta,
Se fizessem primeiro desejadas.
Algumas, que na forma descoberta
Do belo corpo estavam confiadas,
Posta a artificiosa formosura,
Nuas lavar se deixam na água pura.


E a palavra também recria um novo Éden. A luxúria da palavra é levada ao extremo. O recurso à metamorfose contribui para  a "naturalização" e por vezes animalização dos homens. As deusas são cervas, eles galgos. O cromatismo empresta ao poema a sensorialidade e sensualidade máximas. A palavra traduzida em poesia dá sentido ao cosmos e, na expressão feliz do Prof. Eduardo Lourenço, começa a iventar-se esta "maravilhosa imperfeição" - Portugal.

56
Mil árvores estão ao céu subindo,
Com pomos odoríferos e belos;
A laranjeira tem no fruito lindo
A cor que tinha Dafne nos cabelos.
Encosta-se no chão, que está caindo,
A cidreira cos pesos amarelos;
Os fermosos limões ali cheirando,
Estão virgíneas tetas imitando.

Camões, voz profundamente presente e implicada moralmente, aponta bem, a partir da estrofe 89 do canto IX, aqueles que são dignos de usufruirem dos deleites da ilha transitória, chamo-lhe assim porque foi criada para o efeito, aparece e desaparece depois de cumprida a sua função. Por isso aquele é um lugar que todos demandamos, mas que só está ao alcance de alguns.

89
Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas,
Tétis e a Ilha angélica pintada,
Outra cousa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquelas preminências gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha,
Estes são os deleites desta Ilha.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Reflexões do poeta: a lucidez inventada

Plano das reflexões do Poeta:
  • Camões, nas suas reflexões, apresenta-se como guerreiro e poeta, perseguido pela sorte e desprezado pelos seus contemporâneos
  • O Poeta assume papel humanista de intervir de forma pedagógica na vida contemporânea
  • Critica a ignorância e o deprezo pela cultura dos heróis e dos homens de armas (c.V)
  • Denuncia o desprezo pelo bem comum, a ambição desmedida, o poder exercido com tirania, a hipocrisia dos aduladores do Rei, a exploração dos pobres (c.VII)
  • Denuncia o poder corruptor do ouro e o prémio vil (c.VIII)
  • Propõe um modelo humano ideal de"Heróis esclarecidos" que terão ganho direito a serem recebidos na "Ilha de Vénus" (c.IX)
  • O poema evidencia a grandeza do passado de Portugal: "um pequeno povo que cumpriu ao longo da sua História a missão de aumentar a Cristandade, que abriu novos rumos ao conhecimento, que mostrou a capacidade do Homem de concretizar o sonho".
  • Ao cantar os feitos heróicos do passado, Camões quer mostrar aos homens do seu tempo a falta de grandeza do "Portugal presente" e incentivar o Rei a "conduzir os portugueses para um futuro glorioso, para uma nova era de orgulho nacional (c.X)

1º Teste: Proposta de Correcção - Critérios

6
E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande;

7
Vós, tenro e novo ramo florescente
De uma árvore de Cristo mais amada
Que nenhuma nascida no Ocidente,
Cesárea ou Cristianíssima chamada;
(Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos amostra a vitória já passada,
Na qual vos deu por armas, e deixou
As que Ele para si na Cruz tomou)

8
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
Do Turco oriental, e do Gentio,
Que inda bebe o licor do santo rio;
9
Inclinai por um pouco a majestade,
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios feitos valerosos,
Em versos divulgado numerosos.

10
Vereis amor da pátria, não movido
De prémio vil, mas alto e quase eterno:
Que não é prémio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor superno,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.

11
Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são tamanhas,
Que excedem as sonhadas, fabulosas;
Que excedem Rodamonte, e o vão Rugeiro,
E Orlando, inda que fora verdadeiro,
        (……………………………………..)
19
Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteo são cortadas

20
Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em concílio glorioso
Sobre as cousas futuras do Oriente.
Pisando o cristalino Céu formoso,
Vêm pela Via Láctea juntamente,
Convocados da parte do Tonante,
Pelo neto gentil do velho Atlante.
                                   (Lusíadas, canto I)

1 – Identifique os excertos acima transcritos e enquadre-os na estrutura interna de Os Lusíadas.
Conteúdo (C)- 8
Forma (F) - 4
Cenário de resposta:
Os excertos acima transcritos pertencem à Dedicatória (estrofes 6-11) e ao Consílio dos Deuses (estrofes 19-20). Este episódio integra-se na Narração, a Dedicatória é uma novidade na epopeia introduzida por Camões.

2 – As três primeiras estrofes assumem claramente um carácter laudatório. Identifique quem louva, quem é louvado e, pelo menos, três motivos dignos de louvor.
C - 10
F - 6
Cenário de resposta:
A Dedicatória é um texto marcadamente elogioso. Esse carácter está bem patente nas estrofes 6 a 8 nas quais Camões louva o jovem rei D. Sebastião por ser de descêndência divina, o garante da da independência nacional, a esperança da manutenção e da ampliação do império e da fé.
3 – A estrofe 9 inicia-se com uma forma verbal. Identifique-a e refira o seu valor expressivo.
C - 8
F - 4
Cenário de resposta:
A forma verbal que inicia a estrrofe 9  a segunda pessoa de modo imperativo - "Inclinai". Neste caso concreto essa forma verbal tem o valor de pedido, isto é, chamar/captar a atenção do rei D. Sebastião para a obra do Poeta e para os exemplos de dedicação à patria dos seus antecessores, bem como de outros heróis que contribuiram exemplarmente para a contrução do Império.
3.1 – Seleccione outras formas verbais que tenham sentido idêntico.

C - 4
"Ponde", "Ouvi" - repetido em várias estrofes

4 – “Quando subindo ireis ao eterno Templo” (est. 9, v. 4), isto é, templo da fama. A fama desempenha um papel fundamental na sublimação do herói. Tendo em conta a leitura das estrofes 9 – 11, identifique as condições necessárias para se alcançar a fama.
C - 12
F - 8
Cenário de resposta:
Esta é uma parte muito polémica da Dedicatória. Camões acentua a sua função na mitificação do herói. O poeta é um agente importante nessa tarefa. É através do seu canto, do seu "pregão", isto é,  da sua obra que os feitos dos heróis perdurarão. Vereis os heróis nos meus versos. Portanto a primeira condição para se alcançar a fama é que haja um poeta que escreva, que os cante. Outra condição, é a prática de feitos em prol da pátria, pelo amor da pátria, que sejam dignos desse canto, sem qualquer contrapartida de "prémio vil", sem recompensa material.

5 – Nas estrofes 19 e 20, o poeta interliga dois planos narrativos. Identifique-os referindo as marcas linguísticas que configuram a simultaneidade.
C - 8
F -  4
Cenário de resposta:
As estrofes 19 e 20 pertencem à narração e nelas interligam-se dois planos narrativos: o Plano da Viagem de Vasco da Gama/Plano fulcral e o Plano Mitológico/Divino. A simultaneidade é conferida pelas conjunções temporais "Já" e "Quando".
6 – Identifique o recurso estilístico presente nos versos 2 e 3 da estrofe 19, referindo o seu valor expressivo.

C - 6
F - 4

Cenário de resposta:

A figura de estilo presente nesses verso é a personificação/animismo. Transferem-se as características humanas - a inquietação e o respirar - para os elementos da natureza: "As inquietas ondas apartando; /Os ventos brandamente respiravam". Essas características indicam vivacidade e calma ao mesmo tempo como se traduzisse a quietude vivida pelos homens que navegavam, em contraste com a azáfama que vai no Olimpo.
7 – Elabore um comentário com o mínimo de 80 e o máximo de 140 palavras, tendo por base a estrofe 11 e o texto que se segue:
Camões não desconhece o conceito aristotélico de verosimilhança, isto é, aquilo que é real, independentemente ter acontecido ou não, mas que é plausível. Com efeito, “os heróis portugueses não só ultrapassam essas criações da fábula, como têm a vantagem da verdade sobre a ficção. O confronto diz respeito aos heróis.”                                                      
  (Maria Vitalina Matos, A Poesia Épica de Camões)

C -18
F - 12

Desenvolver pelo menos 3 a 4 aspectos:

- A ideia de imitação dos clásscos
- A diferenciação dos clássicos/especificidade da epopeia camoniana
- Factos reais dados pela experiência, por oposição aos mitos...
- Ideia de superação dos heróis clássicos

II
1 – Leia atentamente o texto que se segue e responda às questões formuladas.
Hoje, ao criar-se um sítio na internet, estamos a lançar informação para um espaço virtual, para uma terra de ninguém que tem a qualidade única e insubstituível de todos ali podermos poisar os pés. Aqui e acolá levantam-se vozes contra isso, mas actualmente, ninguém ousa discutir as vantagens daquele instrumento de comunicação. Os antagonistas dariam uma pálida imagem da evolução tecnológica.
1.1 – Identifique, pelo menos, dois deícticos pessoais, dois temporais e dois espaciais.

P- 6       Ninguém, todos
1.2 – Considere a forma verbal estamos (linha 1). Identifique as referências deícticas que exprime.

P - 6        Pessoais, temporais e espaciais
1.3 – O pronome relativo substitui nomes ou expressões nominais. Identifique o antecedente de que, linha 2).

P- 6     "terra de ninguém"/"espaço virtual"
1.4 – Considere os adjectivos virtual (linha 1) e pálida (linha 4) e assinale verdadeira (V) ou falsa (F) cada uma das afirmações que se seguem, por exemplo, g) – F.

P - 6
a) ambos têm valor objectivo        b) ambos têm valor restritivo            c) virtual têm valor restritivo
d) ambos têm valor subjectivo     e) pálida tem valor subjectivo           f) têm valor não subjectivo
c) e e) são verdadeiras, as outras falsas
III

Dos temas propostos, escolha apenas um deles para a sua composição. O texto de carácter argumentativo expositivo deverá ter entre 180 e 260 palavras.

A – Tendo em conta a leitura do episódio de Inês de Castro, considere a hipótese de restaurar a pena de morte em Portugal. Apresente, pelo menos, dois argumentos contra ou a favor, recorrendo a exemplos que ajudem a sustentar a sua posição.

B – Como sabemos, a Europa sofre um grande constrangimento em termos de natalidade. Com efeito, os estados têm apostado em medidas sanitárias e outras que desfavorecem a natalidade, como a divulgação das medidas anticoncepcionais. A Europa envelhece a passos largos, colocando em causa a coesão social. Apresente, pelo menos, dois argumentos a favor ou contra, recorrendo a exemplos que reforcem a sua posição.


                                                                       Votos de bom trabalho, Jorge Marrão




quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Comentário

TEXTO 2
"A imitação dos modelos clássicos era a herança que os classicistas dedicavam aos autores gregos e latinos. Mais uma vez é preciso notar que a imitação não consistia em mera cópia: seguindo os modelos e as tradições clássicas — a arte, a eloquência citada por Camões na Proposição de Os Lusíadas — na qual esboça o projecto do seu canto de sublimação do homem — se ajudado pelo engenho e pela arte, o talento próprio. Para o épico, mais do que imitar, era necessário superar."

Comentário

Tópicos que posso desenvolver:
- o classicismo/imitação de epopeias clássicas Ilíada, Odisseia e Eneida
- matéria de epopeia: os feitos dos portugueses
- a tarefa do poeta
- a superação

O texto aponta claramente para aspectos fundamentais da tradição clássica e do contributo dos portugueses para o Renascimento.
Camões, tanto como poeta lírico como épico, conhece bem os domínios da cultura greco-romana, especialmente as obras homéricas a Ilíada e a Odisseia, a Eneida de Vergílio. Do mesmo modo que os seus antecessores, propõe-se cantar feitos. Camões louva os dos portugueses - descobrimentos e guerras - destacando o contributo das viagens para a inovação, o conhecimento do mundo, o encontro de civilizações, entre o Ocidente e Oriente, há muito desejado; mas também as vitórias guerreiras no alargamento da fé cristã. Esta é a matéria da epopeia.
A tarefa do poeta, com talento e inspiração, é, pois, sublimar, cantar por toda a parte os heróis reais que se distinguiram ao serviço da pátria, superando os feitos dos heróis míticos e antigos.

140 palavras

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A DEÍXIS

DEÍXIS: palavra criada a partir do grego ‘deîksis,deíkse,ós’ «citação, demonstração, prova, exposição»

A deixis designa o conjunto de palavras ou expressões (expressões deícticas) que têm como função ‘apontar’ para o contexto situacional. Com efeito, por si só essas palavras, digamos que são vazias. Essas palavras ou expressões, só ao serem utilizadas num discurso concreto, adquirem significado, uma vez que o seu referente depende do contexto. Por outras palavras, a deixis pode ser definida como o conjunto de processos linguísticos que permitem inscrever no enunciado as marcas da sua enunciação, que é única e irrepetível. Assim, assinalam o sujeito que enuncia (locutor), o sujeito a quem se dirige (interlocutor/destinatário), o tempo e o espaço da enunciação.
O sujeito da enunciação/locutor é o ponto central a partir do qual se estabelecem todas as coordenadas do contexto: eu é aquele que diz eu no momento em que fala; tu é a pessoa a quem o eu se dirige; agora é o momento em que o eu fala; aqui é o lugar em que o eu se encontra; isto é um objecto que se encontra perto do eu, os tempos verbais indicam um tempo anterior, simultâneo ou posterior ao momento da enunciação (ex.: escrevi, escrevo, escreverei. Ou "Já no Oceano navegavam ... enquanto os deuses ... "). Com efeito, é o sistema de coordenadas referenciais (EU/TU—AQUI—AGORA) da enunciação que possibilita a atribuição de sentidos referenciais.


“A própria palavra deixis, pelo seu sentido etimológico, está associada ao gesto de “apontar”.

O diálogo que se segue apresenta a negrito os elementos deícticos:

Joana: Eu amanhã encontro-te aqui às 10h.
Pedro: Eu não estou disponível! Pode ser de tarde?

No primeiro enunciado, eu significa Joana, enquanto, no segundo, eu significa Pedro, tal como o pronome pessoal te do primeiro enunciado. Também o deíctico amanhã só pode ser correctamente interpretado com conhecimento do dia em que decorreu este diálogo, uma vez que significa sempre o dia seguinte ao da enunciação. Do mesmo modo, o advérbio aqui apenas pode ser definido conhecendo o local da enunciação. Finalmente, sufixos flexionais de tempo-modo-aspecto e pessoa-número indicam, neste caso, simultaneamente a pessoa e o tempo verbal: o tempo utilizado (presente do indicativo) indica uma acção que decorrerá num futuro próximo ao do presente da enunciação.
Assim, a interpretação deste enunciado requer o conhecimento das coordenadas AGORA-AQUI, caso contrário, a comunicação revela-se ineficaz. O mesmo acontece em relação à coordenada temporal num cartaz em que se omitiu a data a que se refere hoje:

Hoje, greve geral dos ferroviários!

Os deícticos inserem-se em diversas categorias gramaticais, adquirindo sentido pleno apenas no contexto em que se emitem. Assim, pertencem à categoria dos deícticos:
— os pronomes pessoais;
— os pronomes e determinantes possessivos;
— os pronomes e determinantes demonstrativos;
— os artigos;
— os advérbios de lugar e de tempo;
— os tempos verbais;
— alguns vocábulos, como ir / vir (movimento de afastamento / aproximação em relação ao espaço em que se encontra o locutor e interlocutor, respectivamente).

Em função da sua natureza deíctica, é possível apresentar a seguinte classificação:

Deixis pessoal — indica as pessoas do discurso, permitindo seleccionar os participantes na interacção comunicativa. Integram este grupo os pronomes pessoais (ex.: tu, me, nós, etc.), determinantes e pronomes possessivos (ex.: o meu, o vosso, teu, etc.), sufixos flexionais de pessoa-número (ex.: falas, falamos, etc.), bem como vocativos. (Algumas formas verbais não apresentam um sufixo flexional específico de pessoa-número (ex.: falo, disse, fizer, etc.). Nestes casos, o sufixo inclui as informações relativas ao tempo-modo-aspecto e pessoa-número, tratando-se assim de uma amálgama).

Quanto eu disser não ouças,
quanto eu fizer não vejas;
e, se eu estender as mãos,
não me estendas as tuas.

Aceita que eu exista como os sonhos
que ninguém sonha,
as imagens malditas que no espelho
são noite irreflectida

Talvez que então
da pura solidão
eu desça à vida.
(J. Sena, Fidelidade)

Deixis espacial — assinala os elementos espaciais, tendo como ponto de referência o lugar em que decorre a enunciação. Ou seja, evidencia a relação de maior ou menor proximidade relativamente ao lugar ocupado pelo locutor. Cumprem esta função os advérbios ou locuções adverbiais de lugar (ex.: aqui, cá, além, acolá, aqui perto, lá de cima, etc.), os determinantes e pronomes demonstrativos (ex.: este, essa, aquilo, o outra, a mesma, etc.), bem como alguns verbos que indicam movimento (ex.: ir, partir; chegar; aproximar-se; afastar-se, entrar, sair, subir, descer, etc.).
Vamos até ali... — convidou, implorativo, o Leonel, perdido pela namorada.
Ali, aonde? — perguntou ela, sem forças para resistir.
Ali adiante...
(M. Torga, Novos Contos da Montanha)

Deixis temporal — localiza, no tempo, factos, tomando como ponto de referência o “agora” da enunciação. Desempenham esta função os advérbios, locuções adverbiais ou expressões de tempo (ex.: amanhã, ontem, na semana passada, no dia seguinte, etc.) e sufixos flexionais de tempo-modo-aspecto (ex.: falarei; faláveis, etc.).

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã
a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
(…)
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático

Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã
(Á. Campos, Poesias)

Deixis social — ligada às formas de tratamento, assinala a relação hierárquica existente entre os participantes da interacção discursiva e os papéis por eles assumidos. Servem de suporte a esta função os elementos linguísticos pertencentes às chamadas formas de tratamento (ex.: o senhor, vossa excelência, senhor director, etc.).
Eu quero prevenir já o senhor doutor de que em minha casa um banho é um banho, quero dizer, é para uma pessoa se lavar. (V. Ferreira, Aparição)