quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A Ilha dos Amores - A Utopia

No canto IX, surge uma controvérsia quanto ao estilo sonhador do texto. Como surge encaixado na épica um texto carregado de lascívia? Os marinheiros valentes que usufruem de um locus amoenus geram a descendência semidivina da caça lusa, no qual uma ninfa profetiza os feitos futuros.
O episódio da Ilha dos Amores ocupa uma quinta parte do poema, entre os cantos IX e X. Encontra-se colocado estruturalmente na convergência de todos os diversos níveis de acção/planos que enformam a obra:

- a viagem dos marinheiros;
- a intriga dos deuses;
- a visão da história passada e futura de Portugal (e do mundo de então);

Todavia, introduz uma particularidade relativamente às epopeias clássicas: nestas o conhecimento advinha da catábase, isto é, da visita guiada ao mundo inferior (os Campos Elíseos, na Eneida de Virgilio e mesmo o inferno dantesco, na Divina Comédia); n’Os Lusíadas o conhecimento procede do alto, anábase, ascensão. Vasco d Gama, depois do envolvimento amoroso com Tétis, esta guia-o. Sobem ao cume de um monte para observar o espectáculo do mundo:

- a concepção da estrutura do mundo (cosmos);
- a interpretação filosófica do significado da acção dos homens no mundo;
- a crítica da situação factual da política do tempo de Camões.

Fácil será fazer uma extrapolação e dizer que a Ilha é a visão paradisíaca que a aventura marítima trouxe a Portugal carregado de viúvas e de órfãos! Ou que ela representa uma utopia de feição idealista: o lugar da recompensa dos homens após o longo sofrimento, privação e risco da demorada viagem. Camões percebe que o país de “apagada e vil tristeza” não recompensará nunca os heróis, por isso cria uma utopia ideal. Lugar e modo de recompensa, de encruzilhada e fusão amorosa: Divino e Humano, Esforço e Sonho, Clássico e Moderno.
Mas convém notar que, com a prática erótica que essa Ilha faculta aos homens e ao Gama, é feito, paralelamente, o discurso da revelação da sabedoria histórica e cosmogónica.

Para além de considerações de carácter esotérico, o que o poema nos dá é de facto a prática e o apogeu do amor puro, o "alto amor" como sendo a chave textual para a abertura do conhecimento.
Tais propostas são manifestamente inovadoras, até "heréticas", relativamente às doutrinas, quer neoplatónicas, quer católicas.

É na Ilha dos Amores que a tensão e a carência cedem lugar ao sentimento de conquista sobre o mar desconhecido. A Insula Divina simboliza porto e prémio aos fatigados navegadores, a glorificação pelos feitos heróicos, o restabelecimento da harmonia.

Na Ilha, desfecho do poema,  dissolve-se toda a mitologia a sua ficção maravilhosa e nasce o maravilhoso do Amor, tipicamente camoniano. Como sublinhou António José Saraiva: "a virilidade da coragem bélica se liga tão intimamente ao temperamento amoroso como ao aristocrático desprezo dos bens monetários."

As belas ninfas andavam nuas pelas florestas, algumas tocavam cítaras, outras flautas...

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[...]aconselhara a mestra experta:
Que andassem pelos campos espalhadas;
Que, vista dos barões a presa incerta,
Se fizessem primeiro desejadas.
Algumas, que na forma descoberta
Do belo corpo estavam confiadas,
Posta a artificiosa formosura,
Nuas lavar se deixam na água pura.


E a palavra também recria um novo Éden. A luxúria da palavra é levada ao extremo. O recurso à metamorfose contribui para  a "naturalização" e por vezes animalização dos homens. As deusas são cervas, eles galgos. O cromatismo empresta ao poema a sensorialidade e sensualidade máximas. A palavra traduzida em poesia dá sentido ao cosmos e, na expressão feliz do Prof. Eduardo Lourenço, começa a iventar-se esta "maravilhosa imperfeição" - Portugal.

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Mil árvores estão ao céu subindo,
Com pomos odoríferos e belos;
A laranjeira tem no fruito lindo
A cor que tinha Dafne nos cabelos.
Encosta-se no chão, que está caindo,
A cidreira cos pesos amarelos;
Os fermosos limões ali cheirando,
Estão virgíneas tetas imitando.

Camões, voz profundamente presente e implicada moralmente, aponta bem, a partir da estrofe 89 do canto IX, aqueles que são dignos de usufruirem dos deleites da ilha transitória, chamo-lhe assim porque foi criada para o efeito, aparece e desaparece depois de cumprida a sua função. Por isso aquele é um lugar que todos demandamos, mas que só está ao alcance de alguns.

89
Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas,
Tétis e a Ilha angélica pintada,
Outra cousa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquelas preminências gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha,
Estes são os deleites desta Ilha.

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